Para
contar essa história verídica, vou relembrar rapidamente algumas definições de
leitura, como as dadas por Maria Helena Martins[1],
em seu livro, O que é leitura?
b)
processo de compreensão
abrangente cuja dinâmica envolve componentes sensoriais, emocionais,
intelectuais, fisiológicos, neurológicos, culturais, econômicos e políticos - Ou seja, o indivíduo, como agente e parte da
sociedade em que vive, inteiro, lê, conhece, compreende. (você lê com tudo
aquilo que você é).
A leitura é o processo de interação do indivíduo com seu meio. Pela leitura eu conheço a voz do outro, com a qual construo meu aprendizado e minha linguagem. E isso é mais do que somar elementos. É uma interação, pois o que foi somado, juntado, modifica o que já existia, e nada mais é o que era antes.
Agora a história.
Ela se passa no interior de um estado brasileiro, por volta dos anos 70, época em que
usar recursos áudio visuais numa escola sem recurso algum era pura ficção científica.
Ela se passa no interior de um estado brasileiro, por volta dos anos 70, época em que
usar recursos áudio visuais numa escola sem recurso algum era pura ficção científica.
A professora conseguiu o seu
primeiro emprego num curso de alfabetização de adultos e, empolgada, decidiu
que, além de alfabetizar, enriqueceria aquelas mentes com narrativas que seriam lidas para os alunos semanalmente.
Foi num desses encontros de
leitura que apareceu o Mar. Imenso, imponente, lindo, mas que não alcançou
nenhum ouvinte. E a professora, surpresa, descobriu que nenhum daqueles adultos
tinha visto um dia aquelas águas que ela mostrou nas gravuras, tentou descrever
de mil maneiras sem sucesso.
A leitura, então, foi
interrompida, mas não a preocupação da professora que voltou, na aula seguinte,
munida de um Atlas Geográfico, na esperança de que, assim, pudesse dar aos
alunos uma ideia do que era o Mar. Mas aqueles traços planos e
abstratos só fizeram confundir mais os alunos.
Sem desistir, a jovem
professora levou fotos de outros livros, de seu arquivo pessoal, mas o alcance
das fotos estava longe de representar o Mar. E os alunos ainda a olhavam
descrentes.
Então, ela fez mais: levou
consigo um Globo Terrestre que não era iluminado, mas girava sobre seu eixo,
dando uma ideia melhor do que era chão, do que era água. E, ingênua, tentou
mostrar a eles onde estavam, onde viviam, em que ponto daquela bola ficava a
pequena cidade; e que todo aquele azul era oceano, era Mar.
Ainda não foi dessa vez que o Mar
foi compreendido.
Nesse dia, quando a professora
se preparava para sair e juntava seu material sobre a mesa, chegou uma aluna,
de cabelos longos e escuros, rosto jovem, pés castigados, com certa pressa de
pegar, quem sabe, um final de aula. Sem ver os colegas, ela parou, olhou
para a mesa da professora e revelou seu desapontamento.
-
Ah! Logo hoje que eu faltei teve bingo?
- e foi
embora.
A professora, visivelmente cansada, ficou
diante da mesa, abraçada aos seus livros. Olhou para o Globo Terrestre perfeitamente
associado ao jogo cuja roda gira e que, girando, construiu sentidos para a sua
aluna. Roda palpável que a aluna viu, conheceu, era capaz de entender.
E só então (depois de anos de
estudo), a professora vivenciou o que é Leitura. Não apenas de palavras, mas de
mundo.
“Processo
de interação com seu meio”. ...”que envolve componentes sensoriais,
culturais...”, “ você lê com tudo aquilo
que você é”.
Sim. Você lê com tudo aquilo
que você é, com tudo aquilo que já viu e conheceu um dia. Mas, às vezes, os
limites do que somos são tão estreitos, que não cabe a palavra Mar.
P.S. meses depois, a professora
organizou um passeio com os alunos e todos puderam LER o Mar, tão imenso que antes não cabia!
Nenhum comentário:
Postar um comentário