
Se eu soubesse disso antes, talvez nada tivesse acontecido. Mas como eu
não sabia, naquela manhã infeliz, levantei, tomei café, me arrumei e fui para a
escola. Andei feito barata tonta na sala de aula, no pátio, no caminho de
volta, no hall de entrada do prédio onde moro. Apertei o botão do elevador, distraída,
assim meio que flutuando no espaço, envolvida por doces lembranças em BUM!!!
- Ei, que droga! Tá dormindo,
Flávia?A Lígia, minha irmã, implicou comigo, mal a gente se cruzou. Quer dizer, trombou. Eu querendo entrar e ela saindo do elevador, apressada, derrubando tudo o que eu tinha nas mãos.
- Ai! A culpa não foi minha. Você
que é estabanada! – reclamei, furiosa.
- Eu sou estabanada? Você é que
tinha de me esperar sair, mas vive no mundo da lua!
Ela falava, enquanto pegávamos as coisas que tinham ficado espalhadas no
chão: livros, agenda, o material inteiro. Preferi não retrucar e continuei
recolhendo tudo, na minha. Não estava querendo conversa, quanto mais, briga.
Mas, como nem tudo é como a gente quer, minha irmã deu de cara bem com o que
não podia...
- O que é isso, Flávia? – ela perguntou,
já de pé, esfregando no meu nariz o envelope perfumado que tinha voado de
dentro do meu caderno.
- Nada, Lígia. Não se mete –
estendi o braço para apanhar o que era meu.
- Você está escrevendo para
aquele sujeitinho?
- Não! Me dá isso aqui. Vai
embora, Lígia. Você não estava com pressa?
- Como não? Tá escrito aqui, ó:
Júlio Figueiredo. Existe outro, por acaso? Agora também fazem clones de
abacaxis? Deixa só a mamãe saber disso – ela ameaçou, abanando o envelope e
voltando para o apartamento pela escada.
Fui atrás e tentei segurá-la.
- Delatora, metida, não faz isso!
– implorei, agarrada à sua blusa.
A blusa esticava, Lígia tentava se desvencilhar, mas, decidida,
subiu aos berros:
- MÃE!!! Ô MÃE, OLHA ISSO!
- Para, Lígia. Eu faço qualquer
coisa, o que você quiser, mas não conta...
Não tive tempo de fazer chantagem ou prometer nada porque a mamãe logo
apareceu na sala.
- Que gritaria é essa? O que
aconteceu, Lígia? Você não tinha ido para a escola?
- Tinha – a Lígia falou, firme e
dramática. – Mas o destino quis que eu trombasse com essa tonta só para me
jogar isso nas mãos! Dá só uma olhada, mãe!
- É MEU! – Eu protestei, quase
chorando e me atirando sobre o braço dela, tentando agarrar o envelope à força.
- Larga o meu braço, Flávia! –
Lígia mandava.
- É MEU! SOLTA!!!
- Larga que você está me
machucando, Flávia! A mamãe tem de saber o que você anda fazendo.
- O que eu tenho de saber,
afinal, alguém pode me dizer? – a mamãe falou autoritária e, ainda por cima,
mandou:
- Devolva isso para a sua irmã, Lígia.
Se é dela, devolva.
- DEVOLVER??? – Lígia não quis
acreditar que tinha perdido a parada.
- Sim, senhora – mamãe falou
firme.
Lígia me devolveu o envelope
contrariada e eu, ingênua, por alguns segundos me senti vitoriosa. Já tinha
virado as costas, quando a mamãe perguntou:
- O que é isso, Flávia?
Quando me voltei para ela, pude ver o brilho dos olhos de Lígia
saboreando aquele momento. Minha desgraça, sua glória!
- Coisa minha, mãe. Nada
importante – falei.
- Eu conto! – a Lígia já foi se
metendo outra vez.
- Ela conta – a mamãe falou,
apontando para mim e usando um tom que não permitia protestos.
- É só uma carta... – arrisquei dizer.
- Carta de quem? – a mamãe
perguntou e Lígia se meteu de novo.
- Carta pra quem, mãe! Pergunte:
carta pra quem! Você vai cair de costas! É inacreditável!
- Lígia, vá para a escola que
você está atrasada – a mamãe mandou. – Deixe que eu me entendo com a sua irmã.
Claro que minha irmã não obedeceu. Esperou o circo pegar fogo, já com
uma tocha na mão bem acesa para o caso de o incêndio não ter as proporções que
ela esperava. Então, eu não tive outra escolha senão responder:
- É uma carta para o Julinho...
- Para quem??? – minha mãe fingiu
não ter entendido o que não queria entender.
- Para o Julinho – a Lígia tratou
de repetir bem alto.
- Não posso acreditar, Flávia!
Você escrevendo para aquele cafajeste?
Eu só baixei a cabeça e grudei os olhos num ponto qualquer do desenho do
tapete.
Não era comigo. Aquilo não estava acontecendo comigo. Eu não tinha
levantado, não tinha saído da cama, não tinha nem ido à escola. Eu ainda estava
lá protegida pelas cobertas, com a cara enfiada no travesseiro, quase sem
respirar. Dando um tempo para o temporal passar. Mas ele não tinha nem
começado. Minha mãe ia ainda fazer um sermão daqueles, eu sabia. E sabia o
sermão de cor, de trás para afrente, da frente para trás.
- Será que precisamos conversar
de novo, Flávia? Ainda não deu para entender?
- Conversar, mãe? E com ela
adianta? – disse a Lígia, sempre pronta para atacar.
- Vá para a escola, Lígia. Esse
assunto não lhe diz respeito – a mamãe falou.
Desta vez a Lígia obedeceu, pois já tinha ficado evidente que as coisas
não seriam fáceis para mim. Ela podia seguir sua vida tranquila, ciente de que
eu viveria o inferno. E isso lhe dava um estranho prazer.
Eu sabia muito bem o que estava reservado para mim. A mamãe ia falar,
falar e falar e depois ia ligar para o meu pai e, depois de contar tudo a ele,
ia me passar o telefone. Meu pai ia largar seu filhinho adorado e resmungar
pelos aborrecimentos causados pelas filhas do seu primeiro casamento. A nova
esposa dele entraria na sala batendo com os pés no assoalho, para que eu
escutasse o som da sua impaciência e lembrasse que estava roubando um tempo
precioso da convivência dela com seu digníssimo marido. O bebê ia abrir o
berreiro e pedir colo para o pai dele, que por acaso era meu também, e então
ele, meu pai, feliz por ser interrompido, diria: “chame a sua mãe!”
Tudo isso aconteceria mais ou menos nessa ordem, eu sabia. E sabia por
já ter assistido a esse filme outras vezes.
Mas a minha mãe interrompeu as minhas imagens mentais e me fez lembrar
que eu tinha, sim, saído da cama para viver aquelas experiências desagradáveis.
- Pode começar a explicar
tudinho, antes que eu ligue para o seu pai.
- Explicar o quê, mãe? É a mesma
coisa de sempre – eu falei com o olho ainda grudado no mesmo ponto do tapete.
- Olhe para mim e responda: você
não tem um pingo de vergonha nessa cara?
- Eu amo o Julinho – sussurrei tão
baixo que nem eu escutei.
- Você o quê, Flávia?
- Eu amo o Julinho.
- Depois de tudo, você ainda tem
coragem de me dizer isso? – ela falou, espantada. – Amor?! E você, por acaso,
sabe lá o que é o amor?
- Eu-amo-o-Julinho – repeti mais
alto, pausada e heroicamente quando a vontade era de gritar: EU AMO E AMO E AMO
O JULINHO e deixar claro que eu sabia muito bem o que era amar e que ninguém era
capaz de amar como eu.
- Não posso acreditar no que
estou ouvindo, Flávia. Depois de tudo?
Balancei a cabeça como quem afirma: Sim, depois de tudo.
- Não doeu, não feriu, não
magoou?
Balancei a cabeça outra vez, querendo dizer: Sim, doeu. Sim, feriu. Sim,
magoou. Muito.
- E então, minha filha. Quer
voltar a sofrer? Não foi suficiente? Já não falamos tanto?
Virei a cabeça de lado e encolhi os ombros querendo dizer: Não sei.
- Filha... Não sei mais o que
fazer com você para que esqueça esse homem. Confesso que não sei mais o que
fazer... – mamãe usou um tom de voz muito triste e cansado.
Eu fiquei em silêncio olhando o mesmo ponto no chão.
- Vou ter de falar com seu pai
outra vez, Flávia. Não vejo saída.
Balancei a cabeça como quem diz que entende e virei na direção do meu
quarto, mas ela pediu:
- Me dá esta carta.
- Não. É pessoal – falei.
- Não quero ler, filha. Só não
quero que você a envie.
- Escrevo outra...
Aí foi a vez de ela balançar a cabeça como a dizer: onde foi que eu
errei? Pergunta que os pais sempre se fazem, quando acham que estão perdendo
uma batalha.
E eu fui me arrastando lentamente para o lugar de onde jamais devia ter
saído. Entrei no quarto, tirei os sapatos, joguei os livros num canto, segurei
a carta bem perto do meu peito, deitei com a cara enterrada no travesseiro e
respirei bem fraquinho, bem baixinho, para dar uma parada no tempo, no meu sentimento,
na vida.
Só o pensamento voou...”
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