sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Artigo 3 - Como interpreto Mar, se tudo o que conheço é Chão?


      Para contar essa história verídica, vou relembrar rapidamente algumas definições de leitura, como as dadas por Maria Helena Martins[1], em seu livro, O que é leitura?
 
 a)       a decodificação mecânica de signos mediante aprendizado -    É o  Vygotsky chama de habilitação mecânica, que garante a decifração do código, mas não a leitura.
 
      Fácil identificar esse processo quando desembarcamos num aeroporto de um país cuja língua não conhecemos. Com sorte e uma mínima noção de inglês, diante da palavra EXIT encontraremos a saída. Mas não iremos muito além, se soubermos apenas decodificar.
 
        Por isso, melhor definição seria:
 
b)       processo de compreensão abrangente cuja dinâmica envolve componentes sensoriais, emocionais, intelectuais, fisiológicos, neurológicos, culturais, econômicos e políticos -   Ou seja, o indivíduo, como agente e parte da sociedade em que vive, inteiro, lê, conhece, compreende. (você lê com tudo aquilo que você é).
 
     A leitura é o processo de interação do indivíduo com seu meio. Pela leitura eu conheço a voz do outro, com a qual construo meu aprendizado e minha linguagem. E isso é mais do que somar elementos. É uma interação, pois o que foi somado, juntado, modifica o que já existia, e nada mais é o que era antes.
 
     É aí que reside o maravilhoso: a leitura transforma.
 
 
    
    Agora a história.  
Ela se passa no interior de um estado brasileiro, por volta dos anos 70, época em que
usar  recursos áudio visuais numa escola sem recurso algum era pura ficção científica.
 
                                                                                          .-.-.-.-.-.-.

A professora conseguiu o seu primeiro emprego num curso de alfabetização de adultos e, empolgada, decidiu que, além de alfabetizar, enriqueceria aquelas mentes com  narrativas que seriam lidas para os alunos semanalmente.
 
Foi num desses encontros de leitura que apareceu o Mar. Imenso, imponente, lindo, mas que não alcançou nenhum ouvinte. E a professora, surpresa, descobriu que nenhum daqueles adultos tinha visto um dia aquelas águas que ela mostrou nas gravuras, tentou descrever de mil maneiras sem sucesso.
 
A leitura, então, foi interrompida, mas não a preocupação da professora que voltou, na aula seguinte, munida de um Atlas Geográfico, na esperança de que, assim, pudesse dar aos alunos uma ideia do que era o Mar.  Mas aqueles traços planos e abstratos só fizeram confundir mais os alunos.
 
Sem desistir, a jovem professora levou fotos de outros livros, de seu arquivo pessoal, mas o alcance das fotos estava longe de representar o Mar. E os alunos ainda a olhavam descrentes.
 
Então, ela fez mais: levou consigo um Globo Terrestre que não era iluminado, mas girava sobre seu eixo, dando uma ideia melhor do que era chão, do que era água. E, ingênua, tentou mostrar a eles onde estavam, onde viviam, em que ponto daquela bola ficava a pequena cidade; e que todo aquele azul era oceano, era Mar.
 
Ainda não foi dessa vez que o Mar foi compreendido.
 
Nesse dia, quando a professora se preparava para sair e juntava seu material sobre a mesa, chegou uma aluna, de cabelos longos e escuros, rosto jovem, pés castigados, com certa pressa de pegar, quem sabe, um final de aula. Sem ver os colegas, ela parou, olhou para a mesa da professora e revelou seu desapontamento.    
 
- Ah! Logo hoje que eu faltei teve bingo?   - e foi embora.
 
A professora, visivelmente cansada, ficou diante da mesa, abraçada aos seus livros. Olhou para o Globo Terrestre perfeitamente associado ao jogo cuja roda gira e que, girando, construiu sentidos para a sua aluna. Roda palpável que a aluna viu, conheceu, era capaz de entender.
 
E só então (depois de anos de estudo), a professora vivenciou o que é Leitura. Não apenas de palavras, mas de mundo.
 
“Processo de interação com seu meio”. ...”que envolve componentes sensoriais, culturais...”,  você lê com tudo aquilo que você é”.
 
Sim. Você lê com tudo aquilo que você é, com tudo aquilo que já viu e conheceu um dia. Mas, às vezes, os limites do que somos são tão estreitos, que não cabe a palavra Mar.  
 
P.S. meses depois, a professora organizou um passeio com os alunos e todos  puderam LER o Mar,  tão imenso que antes não cabia!  
 
 




[1] MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 1984.

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