sexta-feira, 9 de março de 2012

Poesia 1 - Lupe Cotrim (1933-1970)

Mês de março, ontem 8, dia da Mulher, homenagens, comemorações. Para falar da Mulher, nada melhor do que retratar a alma de poetas como Lupe Cotrim, morta prematuramente, absolutamente clara e intensa ao descrever o Amor.

I
- Em mim sonhas um mar, um horizonte
murmuravas. - Ao ver-me rio e vento
sabes que ao ser apenas lago e fonte
és imóvel, e sou teu movimento.
E sonhei mais. Que em volta do teu rio
fosse eu contorno e no teu vento eu fosse a
a flexivel resposta de um navio
saciando essa procura que te trouxe.
E sonhei mais ainda pois sonhei
também que me sonhavas. Descobri
que nem mesmo sonhaste o que te amei.
  Na manhã do teu rio em que me apago
ficaram, desse sonho onde vivi,
                                         as águas tristes que não foram lago.

                              II
                              Que o amor assim perdido se conforme
                              e renasça na forma de outro amor,
                              embora sem ser meu. Que se transforme
                              num sorriso distante desta dor.
                                Que as mãos assim crispadas pelo sonho,
                              repousem finalmente na verdade
                              aceita e compreendida em que disponho
                              os limites da estreita realidade.
                              Que o rumo onde te amava e me perdia
                              em tristeza tão grande não incorra
                              sobrevivendo a altura em que eu vivia.
                              Que poesia e não lágrimas escorra
                              dos meus olhos. No sonho já desperto
                              seja água a responder ao teu deserto.

                               III
                              Pouco sabeis de mim. Hoje percebo
                              que o segredo mais puro do que sou
                              vos é desconhecido. É um arremedo
                              apenas do que sinto o que vos dou.
                              Se é receio vos largar o coração,
                                talvez eu tema. Sei o que é silêncio,
                              a mágoa de compor a solidão
                              uma outra vez. E sei que não convenço
                              vossa distância em minha entrega. Perto
                              ou longe, sois limite próprio. Surda
                              é em vós essa paixão em que desperto
                              um arrepio que vossa paz perturba.
                              E intensa me contenho e mais não faço
                              para atrair-vos ao céu que vos disfarço.

                              IV
                              Tudo acabou, bem sei, mas não importa.
                              Não é só de futuro que amor vive.
                               O tempo em que se amou não mais se corta
                              de nós; ainda sou muito do que tive.
                              Nessa entrega também me pertenci.
                              Tive dois corpos, duas almas, em braços
                              mais longos envolvi o mundo. Nasci
                              de nós, por isso levo-te em meus traços.
                              Não pesa que a verdade foi momento,
                              a presença tão breve e o desconexo
                              desse sonho. Restou-me o sentimento
                              em que de novo te surpreendo em mim.
                              E o que foi belo, imóvel num reflexo
                               me enriqueceu de haver amado assim. 
                                "Amar de amor, amor de amar VI", Entre a flor e o tempo, 1961

quinta-feira, 8 de março de 2012

Leitura 16 - "Ouvindo" livros

     Recebo uma carta carinhosa de uma leitora, aluna do Fundamental, que teve como indicação de leitura o meu livro "Um gosto de quero mais", da FTD. A primeira edição do livro é de 1994 e, na época, muito embora os professores sugerissem que temas como a gravidez precoce fossem abordados na literatura juvenil, a adoção era ainda um tanto controversa.  Quando os educadores sentiam que o momento era propício, muitas vezes, os pais se mostravam reticentes: "Por que atiçar a curiosidade dos alunos?" Uma preocupação compreensível, mas que, já se pressentia, por pouco tempo seria contornada.
     Aos poucos, o livro foi ganhando espaço, abrindo caminho junto a tantos outros títulos e temas, promovendo importantes discussões em salas de aula que, bem conduzidas, produzem resultados excelentes. Em 2001, o livro foi atualizado, ganhou nova capa, diagramação e fôlego e já se vão 20 anos de estrada. É ainda um livro jovem que fala ao leitor jovem com algum conhecimento de causa. E, ao falar, é ouvido. Sim, pois como bem dizia Bartolomeu Campos de Queiroz: "ler é também escutar". No intenso diálogo que se estabelece entre autor, texto e leitor, há uma troca única e exclusiva.
     Mas, voltando à carta da minha leitora (uma carta com caligrafia trêmula), ela assim começava: "Querida Sonia, graças ao seu livro deixei de fazer uma bobagem". Na sequência, ela me relatava seu amor adolescente, pleno de contradições - por ser maravilhoso, intenso e proibido - e da sua preocupação com a insistência de seu namorado em iniciar um relacionamento mais íntimo, já que o amor, o verdadeiro amor, tudo permite, tudo quer, tudo pode. Ela não deixou claro se a "bobagem" a que se referia era dar início à vida sexual ou se - já ultrapassada esta dúvida - era interromper uma gravidez não desejada.
     Para quem não conhece o livro, ele fala sobre as inquietações de uma adolescente chamada Cely diante da gravidez de sua melhor amiga, também adolescente, Darlene. Permeando a  narrativa com trechos do diário de Cely, descobrimos o que acontece em seu íntimo, o quanto de conflito e de incerteza a condição da amiga lhe provoca. Cely é a protagonista, mas quem está grávida é a outra, para que o leitor possa - em cumplicidade - partilhar medos e descobertas de Cely, que também se modifica, ainda que protegida por sua condição de espectadora: ela vive com Darlene uma história solidária e paralela cujas consequências não a atingem (não?).
     Cumplicidade foi o que levou minha leitora, possivelmente sem ter outra opção, a recorrer a mim: "graças ao seu livro deixei de fazer uma bobagem... "
     Por um bom tempo, até poder lhe responder com minha humilde condição de mãe, mulher - em algum canto de mim ainda adolescente - eu me detive na palavra bobagem. Bobagem sexo? Bobagem filho? Bobagem aborto? E escrevi com o cuidado e a delicadeza de quem tem em mãos um pássaro ferido. Hoje, porém, ouço a voz do grande escritor, e me dou conta da força contida no que escrevemos/dizemos.  E o que mais me  impressiona na carta da menina é: "graças ao seu livro..."