quinta-feira, 29 de maio de 2014

Leitura 18 - Se esta história fosse minha

                                                     "Se esta rua fosse minha
                                                       Eu mandava ladrilhar
                                                       Com pedrinhas de brilhante
                                                       Para o meu amor passar"
                                                            (Cantiga popular)

   Anos atrás, depois de uma visita a uma escola e de   um encontro enriquecedor com alunos, fui convidada pelos professores a participar de um café, uma pequena reunião. Eles estavam discutindo sobre a adoção de livros e indicação de leituras e comentaram sobre alguns problemas recorrentes nas escolas, difíceis de serem explicados a alunos de 9 a 12 anos.
- As questões éticas, por exemplo, são abstratas demais para que eles entendam - disse a professora Marta. - No entanto, elas estão no nosso dia a dia e em cada atitude que tomamos.
- E  não apenas dentro da escola. Os alunos trazem questões sobre a convivência em casa, nas relações com os amigos... - completou a coordenadora Célia.
- Ontem mesmo tivemos uma experiência assim assim - contou Pedro, o professor de Português. - Uma aluna perguntou se o correto é contar ou não contar para um adulto algo que descobre sobre o irmão ou um amigo e que ela acha estar errado. O que é mais certo fazer?
- A questão da delação é delicada - argumentei. - Mas, felizmente, esses temas filosóficos aparecem na literatura infantil. Em alguns casos, um bom livro ajuda a levantar discussões, até porque os fatos se referem a personagens. Fica mais fácil apontar falhas e acertos.
- Há um certo distanciamento... - ajudou Célia.
- Sim, concordo - disse Pedro. - Porém, embora em várias histórias infantis você encontre exemplos, essas questões mais sutis costumam aparecer em livros de mais fôlego, romances para leitores de  treze, quatorze anos. Eu acho que o momento que vivemos exige uma mudança de atitude. Os fatos praticamente impõem que certos conceitos sejam antecipados e abordados com alunos mais novos.
- De uma forma suave, imagino - retrucou, Marta.
- É - continuou Pedro. - Eu não diria suave, tem de ser clara, verdadeira, mas talvez em histórias mais curtas, dentro de um contexto que eles conheçam... - O que você acha, Sonia?

   Assim, a questão veio para mim e os diálogos foram se aprofundando, se delineando, graças à entusiasmada participação de todos. Afinal, todos sentiam a mesma necessidade e urgência: dar aos alunos ferramentas para maior compreensão de si, do outro, do mundo. Conscientizar, de modo a colaborar com a boa formação e atuação desses meninos num mundo nem sempre justo ou coerente.

   Surgiu ali mesmo um projeto. Do projeto, à coleta de histórias reais acontecidas em escolas ou em seu entorno - uma delas, inclusive, vivenciada por mim. Assim nasceu o livro  Se esta história fosse minha. Cinco histórias verídicas, envolvendo alunos, pais, professores, seres humanos que precisam admitir, corrigir e perdoar falhas assim como se comemoram acertos. Com sinceridade, os fatos foram narrados, trazendo à tona a emoção daqueles que as vivenciaram. Com o mesmo desejo de acertar, transformei as histórias vividas em textos romanceados, em diálogos que nos levam a refletir sobre nós mesmos, sobre a ética que deve permear as relações.

   Nossos temas escolhidos foram: Abuso de poder; Preconceito Racial; Delação; Corrupção; Mentira. Após os textos, criei um roteiro de discussão intitulado Papo Cabeça que é utilizado livremente pelo professor, com todas as variáveis que uma conversa em sala de aula possa apontar. E, depois da discussão orientada, há o convite para que os alunos escrevam, dando sua  opinião sobre o assunto. Daí o nome do livro: Se esta história fosse minha.

   Comumente criticamos, apontamos defeitos e falhas com uma facilidade digna de nota. Falamos mal da administração pública, da política, dos esportes, como se para tudo tivéssemos uma solução infalível. No entanto, se alguém indagar sobre o que faríamos a respeito, nossa aparente experiência simplesmente evapora. Na maioria das vezes, sabemos criticar, não apontar soluções.  Ao mesmo tempo, queremos, e queremos de verdade, acabar com as desigualdades e as injustiças.

   Se esta história fosse minha propõe que questões relevantes sobre cidadania sejam mostradas para os jovens leitores para que eles se conscientizem e, mais do que isso, pensem a respeito. Se esta história fosse minha não traz e não pede respostas certas. Pede apenas respeito e reflexão.

   Não à toa, o livro circula pelas escolas, levando sua contribuição. Não à toa, uma aluna chamada Lia me escreveu: Sonia, li seu livro e mostrei para o meu pai. Ele sempre quis me falar sobre preconceito e não sabia como fazer. Ele sente o preconceito, eu sinto, mas não falamos. Lemos juntos sua história e ele me ajudou a fazer a redação. Se a história Alma Branca fosse minha e eu fosse a Gabi, eu chamava a menina negra pra sentar comigo no ônibus.

   Ah, se esta rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar... inteirinha pra você, menina Lia.

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